quarta-feira, outubro 27, 2004

A Minha Luz e A Minha Sombra - Nós

Vi o reflexo no espelho. Quem era aquela? Aproximei-me. O ambiente estava pesado à minha volta. Uma luz morna iluminava o aposento, que possuía numa das suas paredes um grande espelho que o preenchia. Nada escapava ao seu olhar penetrante. Nada se conseguia olvidar àquela verdade tão irrefutável como irreal. Tão transparente como difusa. Tão enganadora como real.
Aproximei-me suavemente e aquela outra que era eu aproximou-se também. Afastei-me e ela afastou-se também. Ri-me. Finalmente tinha o poder de ordenar e ser obedecida sem questões ou hesitar. No entanto, eu sabia que ninguém me obedecia menos e tão literalmente ao contrário como aquela figura no espelho.
Aproximei-me mais e observei com um olhar crítico a rapariga. Por um momento fugaz desejei-a. Desejei ser como ela. Desejei ter aqueles olhos penetrantes, aquele cabelo suave, aquele corpo docemente curvilíneo, aquele lábios curvados e sensuais e aquela postura digna e confiante. O momento passou e eu voltei a olhar. E voltando a olhar, penetrei-lhe nos olhos e já não desejei ser como ela. Os olhos eram misteriosos, mas opacos, eram penetrantes, mas estavam envoltos num manto negro de solidão, eram inteligentes, mas viam demais, brilhavam, mas eram ingénuos, eram belos, mas eram tristes.
Deparada com o que não compreendia, ou talvez com o que compreendesse demasiado bem, desviei o olhar.
A música começou a soar.
Animei-me.
Comecei a cantar, sem ouvir as palavras que me saiam dos lábios. Deixei-me banhar naquela música comercial, com fraca sonoridade e melodia, mas libertadora aos meus ouvidos. As palavras que me soavam dos lábios e que eu não ouvia, da música que me soava aos ouvidos e que eu ouvia, cantavam a realidade sem a serem.
E aí o espelho voltou a mostrar o reflexo daquela outra que era eu.
E ela cantava. E cantando gritava a verdade. Gritava a verdade que soava aos meus ouvidos que não a ouvia. Exaltava a realidade aos meus olhos que sonhavam. Mostrava o que era a mim que não o era. Eu tentei evitá-la mas ela não me largou. E continuou a berrar-me aquela verdade que eu não ouvia. E continuou-me a mostrar aqueles olhos que eu não via. E aquela que não era real, persistiu em continuar a mostrar-me o que era. Enquanto eu existisse ela ali permaneceria, mesmo que eu a tentasse afastar ela não ia, tal como uma sombra persistente que na sua negrura nos faz ver a luz. A sua voz que eu não ouvia e os seus olhos que eu não via, gritavam uma mensagem ao meu coração que eu não compreendia. Ou talvez compreendesse demasiado bem. Mas a mensagem não passava. Ficava retida no bloqueio do meu cérebro que se esforçava por a contrariar. Por ignorar aquela outra que desejava e que era eu. Esse bloqueio que ocultava o brilho e sufocava a felicidade. Esse bloqueio que era o que não era, e nesse caso existia, prendia-me a liberdade e debitava palavras com sentido que soavam sem alguma vez terem realmente chegado a soar.
Aquela outra eu tentou forçar o bloqueio. Uma, duas, três, quatro, cinco, cem vezes! Sem nunca desistir.
E aí a luz apagou-se e com ela o devaneio louco de lucidez daquela outra que era eu.
Porque nada existe sem a luz.
Apenas as trevas.


E do nada as trevas soltaram-se, como uma corda que não pode esticar mais e se corrói a cada milésimo de segundo, que vai rebentando, chicoteando, vibrando e levando o ar à sua frente, fazendo o vento assobiar baixinho e estalar por fim num corpo, numa parede, no nada que reside à frente. Os gritos instalaram-se da forma louca que instala a demência dentro de alguém, a voz não parava de apregoar a verdade... Qual verdade meu deus? Qual é a verdade que tanto me querem ensinar que eu não posso aprender em livros, em manuais alguns que haja perdidos em baús cheios de pó, que a vida não me pode dar porque eu sou uma alma perdida em mim, sou um farol que engoliu a sua própria luz, uma supernova de emoções catastróficas que se fundem...
Adeus, penso eu de forma exacta e sincronizada com o lento bater do meu coração, adeus mundo de merda que ninguém quer explicar ou tentar compreender, qual verdade que está exposta nas caras dos dias e noites que passam, alguém me ajuda a fugir?
Não quero enfrentar as trevas que se soltam, que da sua prisão se libertam e me perseguem, mas elas correm sem fim atrás de mim, no meu encalço quase que as sinto bafejar-me a nuca, sinto o calor das suas mãos frias, tão frias que me queimam o corpo quando por vezes me tocam... Sinto tanto frio... Meu Deus... Pára!
Não vou pertencer meramente à sombra que tu representas só porque és a imagem que eu sempre quis ser, não vou cair nas armadilhas mais simples só porque julgas que eu caminho sem destino certo, como se a minha vida fosse uma floresta com nevoeiro, onde eu alma perdida tento de forma desesperada, encontrar um caminho de volta para casa.
Casa... Onde fica a minha casa, onde fica verdadeiramente o sítio onde eu posso olhar-me de volta e não sentir o peso da alma negra que me come por dentro? Talvez não exista um lugar assim...Talvez eu sonhe demais com a paz e ignore a guerra que dentro de mim se agita como um frasquinho de um qualquer composto explosivo...

Quero correr, não me agarres, cala-te e deixa a verdade que tu queres vender, deixa-a morrer no frio da geada da floresta que dizes que eu percorro, fica por aí, apodrece e morre na pobreza da tua perfeita imagem, eu não quero... Não quero... Não vou e não gosto de ti, não sou proporcional, não tiro fotografias perfeitas, não sei sorrir e não sei chorar... Só sei estar aqui e aproveitar os meus sentidos. Larga-me depressa e volta para o sítio de onde vieste, como um bicho assustado que foge da luz do Sol, deixa-me sofrer também... Deixa-me que aprenda a chorar sem ter de te imitar só porque tu fazes assim... Vai-te embora e não voltes a olhar-me nos olhos, não espreites... Não existas... Não me tortures mais... Por favor...

Tu és o outro lado do espelho, eu nunca sei bem onde estou quando tu apareces... Qual é o teu lado? Quando me falas dessa forma e me fazes sentir tão irreal, qual de nós é a realidade e qual de nós é a fantasia, qual de nós é a que chora de verdade e sendo assim... Qual de nós imita quem? Eu sou a Sombra, pelo menos é o que tu me chamas quando vens triste chorar para os meus lados, eu sou a imagem reconfortante que encontras do outro lado do espelho quando decides espreitar... Sou o sorriso à noite e a cara feia de manhã...
Onde tu existes... Eu existo, sem saber bem porquê ou como, basta-me saber que ainda assim, as tuas verdades não me servem… Vou saltar para onde se tu constantemente tentas saltar para aqui quando falas sozinha ao espelho? Quando agarras as tuas lágrimas que se reflectem na ilusão de que está ali mais alguém... Eu não sou nada, sou a sombra que nunca existiu, sou a verdade que ninguém consegue falar... Sou o outro lado do espelho, sou imitação... Cópia, alternativa, dissimulação e ilusão.
Tu és a vida e o sangue que corre nas veias, o cabelo agitado ao vento e a mão que percorre as paredes com a ponta dos dedos.
Eu... Sou apenas a sombra que te persegue e assombra.
Sou as tuas trevas e tu a luz que foge de mim.


Escrito a meias com o meu ilustre e querido Vizinho. Quem já lê este Blog há uns tempos sabe que para mim o Vercomosolhos sempre foi o melhor Blog de toda a Blogosfera, razão pela qual esteve sempre no Top5. O Gonçalo é resumidamente o meu ídolo. Este texto foi um dos que mais gostei de escrever e talvez dos mais verdadeiros de sempre. Esta sou eu. Este é ele. Estes somos todos nós. Todos nós temos a nossa luz e a nossa sombra que nos sussuram ilusões e verdades aos ouvidos e das quais tentamos fugir. Obrigado por tudo Gonçalo!

terça-feira, outubro 26, 2004

Ele estava deitado. Simplesmente deitado a ouvir música. O seu sobrolho estava franzido e a sua expressão triste. Tinha um cabelo preto asa-de-corvo brilhante, uns lábios bem definidos, com uma curvatura masculina mas sensual. Uns olhos brilhantes e misteriosos. A cara era estreita, com linhas duras e bem definidas, belas de se contemplar. Era magro, alto e bem feito. As mãos eram bonitas e grandes. O seu olhar estava fixo no nada e os seus pensamentos voavam lá longe, provavelmente tentando alcançar uma paz que não lhe era dada a ver.
Não precisava de olhar mais de uma vez para saber que os pensamentos que lhe assolavam a mente eram tristes e deprimentes. Alguma coisa corria mal. O quê? Só ele sabia. Eu estava à parte a olhar. Também ouvia música. Via que ele estava mal... Muito mal. Queria ajudar. Mas como? Como ajudar alguém que não conhecemos? Alguém por quem passamos todos os dias sem nunca falar? Alguém que passava quase despercebido até àquele momento?
Sorri... Não deve ser assim tão mau.

sexta-feira, outubro 22, 2004

meu amor dourado...

terça-feira, outubro 19, 2004

Poema ao PI

A aula começou e eu não sabia pi.
22.5 minutos passaram e sabia pi/2.
45 minutos passaram e já sabia pi.
67.5 minutos passaram e já só sabia 3/2pi.
90 minutos passaram e saí sem saber pi!
A minha aula deu assim uma volta de 360º.
Entrei sem saber nada, saí igual.


E é isto que se faz quando não se faz nada.

Psst... Aposto que ainda não conheciam esta minha faceta... pouco usual? Heim?

(Ignorem este post, deve ter comido qualquer coisa muito estragada)

segunda-feira, outubro 18, 2004

Cinzento

O vento fustigava-me o corpo e a cara enquanto o meu frágil corpo se impelia estoicamente em frente. Sempre em frente. Sem nunca parar. Um pé depois do outro. Mas não avançava. Permanecia no mesmo lugar... Sempre. O mesmo ciclo. A mesma roda. O mesmo outra, outra e outra vez. No entanto avançava. Sempre avançou. Lugares familiares deslizavam desconhecidos aos meus olhos, enebrecidos por um manto cinzento que cobria o mundo. Que me cobria a alma. E que humedecia os olhos. Se as lágrimas prestes a cair se deviam à força do vento ou ao buraco negro do meu coração não sei. Não o conseguia dizer.
O vento estava cada vez mais forte.
Depertou-me.
Sabia bem... Sabia tão bem aquela dor. Aquele vento cortante acordava-me os sentidos, penetrando-me nos ossos do corpo mas refrescando-me a alma. Mergulhei naquele cinzento, onde encontrei algum descanso provisório. Mergulhei no cinzento e deixei-me banhar por ele enquanto aspirava a um raio pleno de luz, quente e rejuvenescente de Sol. Aspirava ao que não queria. E queria o que não aspirava. Por isso não avançava e tudo o mais era cinzento.
A música soava alta nos meus ouvidos. Músicas de esperança, músicas de amor, músicas de solidão, músicas de sacrifícios, todas elas deslocadas. Ou talvez fosse eu quem estava deslocada.
Pensamentos lugubres trespassavam-me o cérebro, enquanto avançava... Avançava... Avançava sempre, banhada por cinzento.
Quero um arco-íris. Quero que os meus pés me levem a um sítio novo. Quero um raio de Sol no meio do Inverno.
Quero cor.
Aspiro a cor.
Quero vermelho, amarelo, cor-de-rosa, azul, laranja, beje, castanho, roxo, verde, lilás, quero todas as cores.
Quero pegar num pincel e cobrir todo aquele cinzento com uma tala feita das cores mais bonitas do Mundo.
Quero pegar no vento e torná-lo numa brisa agradável que ondule os cabelos e me impulsione para a frente.
Quero pegar nas nuvens e torná-las no mar com a cor safira mais bonita que existe.
Quero pegar nas ruas e pintá-las de todas as cores.
Quero pegar nas pessoas apressadas que passavam por mim sem que nem eu nem elas nos vissemos e estampar-lhes um sorriso na cara e um beijo escondido no canto da boca.
Quero pegar na chuva e torná-la numa cascata de felicidade.
Quero pegar nas árvores raquíticas e torná-las esplendorosas e plenas de vida.
Quero pegar em mim e sair daqui.
Estou cansada.
Vou-me deitar.
A sonhar.

quinta-feira, outubro 14, 2004

Dá-me...

Dá-me forças para lutar.
Dá-me amor para ser forte.
Dá-me uma vacina contra a desilusão.
Dá-me invulnerabilidade à dor.
Dá-me capacidade de perdoar.
Dá-me saber para não errar.
Dá-me esperança para sorrir.
Dá-me alegria para rir.
Dá-me música para sonhar.
Dá-me dança para me libertar.
Dá-me o mar para me banhar.
Dá-me a Lua para admirar.
Dá-me o Sol para me exultar.
Dá-me paixão para me preencher.
Dá-me os teus olhos para fixar.
Dá-me os teus lábios para beijar.
Dá-me a tua pele para tocar.
Dá-me as tuas mãos para segurar.
Dá-me o teu cabelo para amaciar.
Dá-me o teu peito para me encostar.
Dá-me o teu tronco para agarrar.
Dá-me o teu pescoço para lambuzar.
Dá-me a curva dos teus braços para me encaixar.
Dá-me os teu pés para com os meus se entraçarem.
Dá-me as tuas pernas para comigo caminharem.
Dá-me o teu sorriso para corar.
Dá-me a tua voz para me elucidar.
Dá-me a tua boa vontade para me moldar.
Dá-me cores para te pintar.
Dá-me o teu carinho para te descobrir.
Dá-me uma chave para abrir o teu coração.
Dá-me o paraíso.
Dá-me um passaporte para bem longe daqui.
Dá-me tudo...
Não!
Não dês...
Não me dês nada.
Não dês o teu coração que eu posso partir.
Não dês a chave que eu posso perder.
Não me dês um passaporte para longe que eu posso fugir.
Não me dês o paraíso que eu posso não o reconhecer.
Mas fica...
E não sejas meu...
Não quero nada de ti para mim.
Nem quero nada de mim para ti.
Quero antes tudo para ti...
E que tu queiras tudo para mim.
Não quero abrir o teu coração, quero pertencer-lhe.
Não quero ir embora, quero ficar contigo.
Não quero nada, mas anseio por tudo.

Deixa-me salvar-te...
Fica...
...e Sorri.





terça-feira, outubro 12, 2004

A vida é irónica

Morreu Christopher Reeve, actor protagonista do filme Superman, de ataque cardíaco com 59 anos. Chirstopher estava tetraplégico há nove, devido a uma queda de cavalo. Tornou-se deste então num dos maiores defensores dos direitos dos deficiêntes e doou dinheiro para pesquisa sobre lesões cervicais. Participou ainda num outro filme pelo qual recebeu um prémio.

Eu estava no carro quando soube a notícia... Pûs-me a pensar na ironia de tudo isto... O Super-homem tetraplégico. É irónico não é? O Homem que supostamente deveria representar a glória da força humana, a glória dos próprios deuses, reduzido a uma cadeira de rodas e ligado a máquinas.
Talvez seja um aviso divino em como não devemos tentar ultrapassar os nosso próprios limites, talvez seja um ensinamento da vida em como há um preço a pagar por tudo o que se tem, ao qual nem o Super-Homem escapa, talvez seja uma consequência, ou talvez seja a ironia do destino.
Toca-me.
É irónico. É cruel. É frio. É nu. É cru. É injusto. É duro. É irreversível.
É a vida.
É a morte.
É... É o quê?

É a Fé!
É a força da vontade humana.
É a coragem de enfrentar a vida.
É o não desistir. Porque Christopher Reeve foi na realidade um verdadeiro Super-Homem não se conformando com a sua sorte e lutando contra todas as marés sem nunca desistir, sem perder a esperança, sem se render à sua sina. E essa coragem supera qualquer ensinamento divino. O seu papel de meio Deus no filme foi glorioso, mas a luta que empreendeu contra as partidas do destino em vida, foi grandioso.
A Fé é um dos sentimentos mais belos e poderosos humanos... A verdadeira Fé é acreditar sem precisar de provas para isso, é lutar contra todas as probabilidades de vencer porque se acreditar que é possível, é elevar o ser à condição.
A Fé é força.

Ele é um verdadeiro Super-Homem.

Ele e todos quantos não se conformam com a sua "karma" e lutam pelo direito irrefutável à felicidade.



Fomos todos feitos para sofrer... Porque apenas assim poderiamos reconhecer o rosto da felicidade quando ela se materializasse à nossa frente. Porque apenas assim podemos conhecer o brilho da glória e o sabor do sucesso. O valor e a honra da coragem... O mais belo da nossa frágil condição humana. Passamos por provocações para alcançarmos lúcidos o final do túnel. Não basta ser feliz... É preciso merecê-lo.

"O que não nos mata torna-nos mais fortes."


quarta-feira, outubro 06, 2004

Uma Flor Guardada no Coração Dentro de Uma Caixa de Madeira

A luz era dourado rosado. O quarto estava iluminado pelo Sol do fim da tarde, cujos raios entravam docemente pela janela de vidro duplo, num banho de luz aparentemente etérea, mesclada com tons de rosa da decoração. Aquele era o quarto tão meu e tão de outrém, atafulhado de objectos e objectos, numa colecção dispensável de consumismo obcessivo, patrocionado pela ainda mais obcessiva sociedade supérfula. Objectos que se tinham tornado parte daquela decoração tão opressora quanto aconhedora que caracteriza o quarto de alguém. Objectos que ao tornarem-se parte formavam um pequeno mundo onde tudo estava desorganizado mas tudo parecia estar certo. Um mundo para o qual não havia paciência para o organizar, um mundo que estava lá invisivel na azáfama do dia-a-dia, um mundo que parecia simplesmente não ter importância mas que se fosse derrubado desmoronaria tudo o resto. Às vezes olhava com vergonha e apreensão para aqueles objectos que nunca usara mas que por outro lado também não me conseguia desfazer. Tinham-se tornado pessoais. Depois olhava para os outros, aqueles que me recordavam bons momentos sem pensar, aqueles que transmitiam uma sensação que era associada instantaneamente a uma memória do cérebro que ficava no entanto guardada... guardada no sub-consciente. E havia outros que nos evocavam sentimentos e memórias, que nos transmitiam um sentimento de pertença, que nos uniam a algo indefínivel por palavras, mas certo por sensações, outros que nos tocavam bem lá no fundo quando os olhávamos ou tocavamos... Esses eram aqueles que estavam guardados no coração.
A Flor era um deles.
Em cima da cómoda, no meio de outras caixas que eu nunca no meu juízo teria comprado para mim, mas das quais já não me conseguia simplesmente desfazer, estava pousada uma caixa de madeira. Essa caixa de madeira tanto podia estar ali, como em qualquer outro sítio. Era uma caixa relativamente pequena com um azulejo emoldurado por madeira a fazer de tampa. Nesse azulejo estava o desenho de uma flor. Uma caixa azul como tantas outras, com um formato igual a muitas outras mais. A caixa era só por si bastante especial. Oferecida por uma grande amizade, tinha no seu interior guardados três tesouros inestimáveis.
Três tesouros de criança.
O primeiro tesouro era um pedra. Uma pedra negra, vítrea dum dos lados e pintada do outro com intrinsecados tribais. Uma pedra ofertada pela Mãe vinda de países longíquos para dar sorte a quem nela cresse.
O segundo tesouro era uma pedra verde vítrea símbolo duma amizade inexlicácel e particularmente indefinível, mas que perdura sem que para isso haja explicação. Uma pedra verde cuja crença assegura trazer a boa sorte e amor à vida das pessoas.
O terceiro tesouro, guardado bem no fundo da caixa é uma flor. Uma flor amarelecida e endurecida pelo tempo. Uma flor branca duma espécie desconhecida ofertada num dia solarento longíquo por um rapaz a uma rapariga. Uma flor oferecida por cavalheirismo, por casualidade, que acabou por se tornar na maior lembrança duma paixão do outrora. A única verdadeira. A única certa. A única que acelarava o ritmo do coração pelo amor, pela admiração, que incendiava uns olhos puros e inocentes com a chama da paixão, nunca movida pelo desejo ou pela luxúria. A lembrança de criança do sentimento mais puro desde então sentido. Da certeza mais convicta. Da saudade mais bonita.
A lembrança de dias melhores. A lembrança do outrora. A luz que ilumina o futuro chamando por dias felizes. A luz branca, tão pura e inocente como uma flor.
Uma flor, guardada no coração, dentro de uma caixa de madeira.